A filigrana da Póvoa de Lanhoso passou a integrar o Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, desde maio. Esta arte de fazer renda em ouro, que conquista estrelas da música e do cinema, princesas e rainhas, depende de um punhado de oficinas e de umas poucas dezenas de artesãos.
No fim das aulas, João Fernandes corria para casa, não se distraía a jogar à bola, nem alinhava com o grupo que saltava os muros das quintas para ir surripiar fruta. A família contava com as suas mãos habilidosas para fazer Contas de Viana e quando não era isso, havia sempre trabalho no campo. Muitos dos mestres da filigrana, que fazem algumas das mais belas peças da joalharia portuguesa, começaram assim, a trabalhar em casa, nas aldeias de Travassos e Sobradelo da Goma, na Póvoa de Lanhoso.
Corria o ano de 1989, aos 12 anos, o que João Fernandes mais desejava era ver o sexto ano terminado, para poder ingressar numa oficina e começar a aprender “ a arte da filigrana a sério”. Naquele tempo, a procura pelas Contas de Viana era tanta que as oficinas subcontratavam esse trabalho às famílias. “Em Travassos e Sobradelo da Goma faziam-se contas porta sim, porta não. Metade da população das duas freguesias, ou mais, estava envolvida no negócio”, recorda João Fernandes.
Todavia, o pequeno João sonhava com outros voos. Queria aprender a arte de fazer os belos Corações de Viana, os Brincos de Bambolina ou de Rainha e os Trancelins e foi por isso que deixou a escola e ingressou na Oficina de Abel Armando Silva. Nos 36 anos que passaram, o aprendiz tornou-se num artesão experiente e nunca se arrependeu do rumo que escolheu para a sua vida. “Outros foram para fora, para França, Suíça. Ganha-se mais, mas isto é uma arte bonita, uma coisa da nossa terra, alguém tem de a continuar”, afirma. A inscrição da filigrana da Póvoa de Lanhoso no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, pela Direção-Geral do Património Cultural, em maio deste ano, e a certificação das oficinas e dos artesãos veio dar a estas pessoas um reconhecimento merecido, por um trabalho que exige paciência, perícia, técnica, aprendizagem, mas também imaginação e criatividade.
A Abel Armando Silva é uma das oficinas que incorpora menos tecnologia e onde o processo secular de tratar a prata e o ouro se mantém quase como sempre foi. Luís Vale é colega de João Fernandes e, tal como ele, desde que saiu da escola, aos 12 anos, nunca conheceu outra profissão. Juntos fazem todo o processo, desde derreter o metal (ouro ou prata), puxar o fio, entrelaçar, até à manufatura das peças. A oficina é gerida por Rosa Silva, de 61 anos, descendente de uma família que vai na quinta geração de ourives.
João Fernandes derrete o ouro com recurso a um maçarico – uma das poucas concessões à tecnologia. O metal tem de atingir os 1 064 graus para derreter no cadinho. Verte o ouro líquido numa “rilheira”, para obter uma barra a partir da qual o pode trabalhar. Luís Vale pega naquele pedaço de metal tosco de não mais de dez centímetros e começa a passá-lo sucessivamente entre duas roldanas. A cada passagem, a barra alonga-se e fica mais estreita, ao fim de alguns minutos, torna-se num fio cada vez mais fino, até à espessura que o artesão desejar. “São 0,18 ou 0,20 milímetros no caso do ouro, um pouco mais para a prata”, explica. Para chegar à medida desejada, o fio ainda passa pelos “rubis” – discos com orifícios no centro, progressivamente mais finos. “No final temos qualquer coisa como a grossura de um cabelo”, mostra Luís Vale, segurando o fio entre os dedos.
No passo seguinte – torcer -, são necessários os dois homens: enquanto um segura dois fios de ouro, o outro enrola-os um no outro, torcendo-os entre duas tábuas. João Fernandes pega nesta trança de dois fios e bate-a, para obter um filamento espalmado: o fio de filigrana.
Há pequenas diferenças entre a técnica da Póvoa de Lanhoso e a de Gondomar
Com mais ou menos tecnologia, o processo para obter o fio é igual nas sete oficinas certificadas da Póvoa de Lanhoso e não difere do que se faz em Gondomar, o outro concelho onde a Filigrana Portuguesa tem grande expressão e que também está em processo para obter a inscrição no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial. A diferença entre a filigrana da Póvoa de Lanhoso e a de Gondomar está em detalhes da técnica, como a pequena cabeça na ponta do fio, nos olhetes feitos pelos artesãos povoenses. Nada que tenha impedido os dois concelhos de cooperarem na obtenção da certificação e na criação da marca “Filigrana de Portugal”, uma chancela que abrange as peças feitas nos dois municípios. Se é verdade que um especialista como Francisco de Carvalho e Sousa, tetraneto de ourives e dono do Museu do Ouro, em Travassos, não hesita quando se trata de distinguir um trabalho da Póvoa de Lanhoso de outro de Gondomar, para a maioria das pessoas eles são iguais. As técnicas aproximam-se tanto que é possível os artesãos dos dois concelhos colaborarem em alguns trabalhos.
A pujança do setor, na época em que João Fernandes e Luís Vale se iniciaram na arte, foi-se perdendo com o entrar do novo século. “No princípio do século XXI havia 40 oficinas, em Travassos, 20, em Sobradelo da Goma e mais umas dez no resto do concelho, atualmente são menos de uma dezena no total”, observa o responsável pelo Museu do Ouro. A emergência de novas gerações com hábitos de consumo e poupança diferentes, o aumento do preço do ouro e alguma falta de renovação foram fatores que contribuíram para o desaparecimento de várias oficinas. “Muitos dos que passaram por este trabalho foram para o estrangeiro e hoje já não se vê gente a trabalhar em casa”, aponta João Fernandes. “As peças em ouro, além do valor que tinham como adorno, eram vistas como uma forma de poupança. Eram também uma maneira de compensar as filhas que não herdavam terras. ‘A mulher prendada’ era aquela que ia para o casamento carregada de ouro, foi assim que nasceu a figura da mulher minhota que as Festas de Nossa Senhora da Agonia, em Viana do Castelo, popularizaram”, explica Francisco de Carvalho e Sousa.
O objetivo é ver esta arte reconhecida como património da humanidade
Estes hábitos deixaram de fazer sentido para as novas gerações e a isso somou-se a subida do preço da grama de ouro que, nos anos 90, andava pelos dez a 15 euros e, atualmente, ronda os 60. Neste quadro, o interesse dos municípios por uma arte que se estava a perder foi fundamental para lhe dar um novo vigor. O primeiro passo foi a certificação, alcançada em 2018, num trabalho conjunto entre os municípios de Gondomar e da Póvoa de Lanhoso. “Atualmente, quem compra uma joia com a certificação “Filigrana Portuguesa” tem a certeza que está a comprar uma peça genuína, produto do trabalho de artesãos”, destaca o presidente da Câmara da Póvoa de Lanhoso, Frederico Castro. O reconhecimento como Património Cultural Imaterial “é mais um passo a caminho do reconhecimento que se pretende como Património da Humanidade, pela UNESCO”, assinala o autarca.
Este trabalho tem dado frutos e a prova disso é que celebridades do cinema e da música e figuras da realeza aparecem cada vez mais frequentemente com peças de “Filigrana Portuguesa”. “Quando a Sharon Stone foi fotografada com um Coração de Viana, fez mais por nós do que 100 anos de Festas da Senhora da Agonia”, ironiza Rosa Silva. Além da atriz, a cantora Joss Stone também é fã do coração em “Filigrana Poruguesa”, a rainha Letizia, de Espanha e a princesa Mary, da Dinamarca, têm Brincos de Rainha.
No centro da Póvoa de Lanhoso, um clã feminino – Inês Barbosa e as filhas Rita e Maria Inês – gere uma oficina de filigrana que guarda um saber que está na família há centenas de anos, com os olhos postos no futuro. O processo não é diferente do que acontece na Abel Armando Silva, mas aqui já se veem equipamentos modernos, como máquinas de soldar a laser. Inês Barbosa tem orgulho por ter passado a técnica às filhas. “Todas sabemos ‘encher’”, confirma Ana Inês. O ‘enchimento’ é a parte do processo que exige mais perícia. Trata-se de colocar de pé um filamento finíssimo, enrolá-lo para fazer os pequenos rodilhões que vão enchendo – lá está – a armação da peça. É este labor manual, que leva anos a apurar, que torna a “Filigrana Portuguesa” única. “É possível obter resultados parecidos com recurso a processos de injeção. Mas não têm o mesmo acabamento, o mesmo detalhe”, assegura Manuel Silva, um artesão da Oficina do Ouro que, aos 45 anos, já leva 33 a trabalhar na filigrana.
Rita Barbosa é designer de formação e trouxe para a oficina familiar um toque de arrojo, para conquistar novos clientes, com peças que fazem uma síntese entre tradição e modernidade. A faceta mais conhecida destas novas interpretações da técnica da filigrana é o trabalho da designer Liliana Guerreiro, com vários prémios internacionais e exposições no MoMA e MAD-Museu de Arte e Design, em Nova Iorque. Estas peças contemporâneas, contudo, continuam a depender das mãos de artesãos que escasseiam.
Falta quem queira continuar
Elsa Rodrigues, uma das sócias da Oficina do Ouro, filha e neta de ourives, recorda que aprender a arte “não era uma questão de vontade, tínhamos que o fazer para ajudar a família”. Atualmente, os jovens já não deixam a escola aos 12 anos, como João Fernandes, para aprender a profissão. Elisabete Rodrigues, artesã na Oficina do Ouro deixou a escola aos 15 anos “para trabalhar de ourives”, mas confessa que não quer o mesmo destino para a filha. “ Ela até quer vir aprender, mas eu preferia que ela seguisse outra coisa menos cansativa e mais bem paga”, afirma. Folheando os livros de fumos que o pai lhe deixou, onde estão registados os desenhos das jóias que eram colocadas sobre um candeeiro a petróleo até que ficassem impressas como uma sombra no papel, Elsa Rodrigues confessa que uma das dificuldades do setor é a falta de mão-de-obra. “Aos 18 ou 20 anos é mais difícil aprender. Um artesão leva anos a formar e, quando finalmente aprende, não temos nenhuma garantia de que não se vai embora”, queixa-se.
João Fernandes já não vai a lado nenhum, solda as inúmeras partes de mais um coração que acaba de ‘encher’, e confidencia que já perdeu a conta aos que fez. Muitos dos homens com quem cresceu foram para o estrangeiro e “construíram vidas boas”. Quando termina o trabalho, tira os óculos, uma ajuda para a vista que se foi cansando pelo tanto que lhe exigiu ao longo dos anos, e apresenta com orgulho o cartão de artesão. Um reconhecimento profissional que surgiu com a certificação, mas que não chega. “O problema da falta de mão-de-obra é que os artesãos ganham pouco mais que o salário mínimo e isso não basta para atrair gente nova”, lamenta.
As reportagem fotográfica é do Miguel Pereira.
Sala de Interpretação da Filigrana
Situa-se na Casa da Botica, no centro da vila da Póvoa de Lanhoso, e é um espaço onde se pode conhecer a história e o processo da filigrana. Encontram-se ali as principais ferramentas do ofício e painéis interpretativos que destacam a importância da Póvoa de Lanhoso na indústria do ouro, desde tempos pré-romanos.
Museu do Ouro
Situado na freguesia de Travassos, é de propriedade privada e não está permanente aberto, é conveniente fazer um contacto antes de visitar. Encontra-se aqui uma oficina tradicional, com a sua forja de fole e as bancadas de ourives com as respectivas ferramentas, colocadas em frente de enormes janelas, viradas a sul. Neste espaço há uma exposição permanente, uma galeria para apresentações temporárias e uma loja.
Centro de Formação
Até ao final do ano, o CINDOR – Centro de Formação Profissional da Indústria de Ourivesaria e Relojoaria, com sede em Gondomar, em colaboração com a Câmara Municipal da Póvoa de Lanhoso, pretende abrir um espaço de formação, naquela vila, especificamente dedicado à arte da filigrana.
Ouro Português
A filigrana faz-se com Ouro Português ou prata. Com o preço do ouro em valores historicamente altos, o uso da prata, antes muito limitado, aumentou. Em ourivesaria raramente é usado ouro puro, o toque do Ouro Português (19,2 quilates) corresponde a uma liga com 80% do metal precioso e 20% de outros metais, como o cobre ou a prata. O Ouro Português é, em regra, melhor que o que circula nos mercados internacionais que tem 18 quilates, ou seja, apenas 75% de ouro.
O Coração de Viana
É a peça mais emblemática da filigrana e, porventura, da ourivesaria portuguesa. Em algumas oficinas representa 90% da produção. Conta-se que foi criado em finais do século XVIII, para a Raínha D. Maria I (1734-1816), grata pelo nascimento do seu filho varão, em homenagem ao Sagrado Coração de Jesus. Tornou-se num símbolo de Viana do Castelo, onde existe um santuário, no Monte de Santa Luzia, dedicado ao Sagrado Coração de Jesus.