O festival Guidance faz uma retrospetiva do trabalho do coletivo Dançando com a Diferença. Após a apresentação do seu trabalho mais recente, há um regresso ao passado previsto para os próximos dias.
A companhia Dançando com a Diferença voltou na noite de sexta-feira à Cidade Berço, onde é destaque da 12ª edição do Guidance. No palco, ainda a cheirar a novo, do renovado Teatro Jordão, a companhia madeirense apresentou “Blasons”, de François Chaignaud, e “Doesdicon”, de Tânia Carvalho. Dois espetáculos de um só fôlego.
“Blasons” arranca com um momento de incomodidade, em que, no silêncio da sala, os bailarinos observam demoradamente a plateia. Sustentam o olhar ao limite do aceitável, perscrutam nos olhos de quem os vê os pensamentos mais escondidos. A meio metro do chão, o olhar poderoso de Mariana Tembe – uma bailarina moçambicana amputada das duas pernas – domina quem quer que se atreva a olhá-la de frente a partir do público. A certa altura, não é certo quem veio ver quem. É óbvio que aqueles corpos que povoam o palco, estranhos, são habitados por uma autoconfiança com que o comum dos mortais só pode sonhar.
Os bailarinos vão rodando na boca-de-cena, cada um deles, sozinho, enfrenta o público e passa a vez ao seguinte. Antes de se retirarem, contam, descaradamente, um segredo sobre aquilo que viram, apontam e olham sem vergonha. Brasões (Blasons) são poemas que surgiram em meados do século XVI, em França. Estes poemas descreviam partes do corpo feminino, a garganta, o lábio, o mamilo. Eram uma dissecação, o corpo do outro brasonado. A peça de Chaignaud rejeita esta ideia de que há pessoas com o privilégio de brasonar os corpos alheios e oferece-nos um contrabrasão.
Escuridão e revelação
Em “Doesdicon”, Tânia Carvalho convida-nos a entrar num mundo de marionetas avariadas, mecanismos disfuncionais. “Omnipotente”, ouve-se, na voz da própria coreógrafa, acompanhada por uma música épica. É um contrassenso, a personagem, qual bailarina de caixinha de música avariada – plim, plim, plim -, não funciona. É numa condição de imensa fragilidade em que a personagem se arrasta pelo chão e se tenta erguer. Não consegue. O jogo de luz, entre a escuridão e a revelação, ajuda a produzir o efeito dramático.
A peça evolui para momentos menos sombrios, em que o coletivo de bailarinos se reúne em volta daquela personagem dando largas ao um lado mais jovial, com traços de um imaginário infantil. A bailarina continua a não funcionar, mas o frenesim eletrizante em volta dela faz disso um detalhe menor. Antes do final, em que a bailarina volta ao solo, há uma nota de luz que alguns preferirão reter, o momento em que, com a ajuda de uma mão sobre o pescoço, ao som de ruídos mecânicos, por um instante ela se mostra em pé.
Dançando com a Diferença tem ainda mais dois momentos nesta edição do Guidance. No dia 9, a companhia volta a um momento marcante da sua história, reinterpretando “Beautiful People” (2008), de Rui Horta. “Eu quero ser uma bailarina famosa e reconhecida internacionalmente”, gritava-se nessa peça. “Hoje, deixou de fazer sentido, porque elas (e eles) são bailarinas famosas internacionalmente. No ano passado fizemos 60 espetáculos no estrangeiro”, aponta Henrique Amoedo, o diretor da companhia, com um sorriso.
No dia 7, vai ser exibido o filme do espetáculo “Endless” (Abril, 2022), de Eva Ângela, em que centenas de participantes se apresentaram em palco, depois de um trabalho feito ao longo de semanas, em vários pontos do território de Guimarães.
Esta notícia foi publicada em jn.pt, no dia 4 de fevereiro de 2023.