Skip to content
Home » Blog » Trissomia 21: Mudanças culturais multiplicaram os anos de vida

Trissomia 21: Mudanças culturais multiplicaram os anos de vida

A esperança de vida de um bebé com síndrome de Down nascido em 1960 era de 10 anos, atualmente pode ultrapassar os 60. Melhoraram os cuidados médicos, mas, principalmente, mudou a atitude da sociedade face à diferença.

Rita Baptista, abraçada à mãe, Fátima. Fez o 9º ano e chegou a trabalhar num infatário. Foto: Artur Machado/ GI.

As pessoas com trissomia 21 (T21), a mais vulgar das desordens cromossómicas, estão a viver mais. As famílias, os médicos e técnicos que lidam com eles diariamente, ainda os tratam a todos por “meninos” ou “jovens”, mas muitos deles já têm cabelos grisalhos. O aumento dramático da esperança de vida, na opinião dos especialistas, está mais relacionado com o investimento que a sociedade como um todo passou a fazer nestas pessoas, do que com os avanços da ciência médica. A longevidade, porém, traz um novo desafio aos pais que agora têm de encarar a possibilidade de estes filhos lhes sobreviverem.

Mónica Pinto, pediatra do neurodesenvolvimento, teve a sua primeira paciente com síndrome de Down, nos anos 90. “Morreu, em 1996, com 18 anos, como um peixe fora de água, afogada nas suas próprias secreções, porque o coração deixou de conseguir bombar”, recorda. 

Esta menina devia ter sido operada ao coração poucas semanas depois de nascer, mas, em 1978, não era óbvio para os médicos que valia a pena investir nestas crianças. “A cirurgia de que falamos já era prática vulgar. No caso de qualquer outra criança, não havia dúvida que era para fazer. Nestes casos, a ideia era que não valia a pena. A sociedade como um todo não investia nelas, eram escondidas, primeiro em casa, depois nas instituições, por vezes não eram vacinadas”, relata.

Segundo Bárbara Pereira, pediatra do desenvolvimento, no Hospital de Guimarães, o  exame pré-natal, “realizado no 1.º trimestre da gravidez, permite quantificar com fiabilidade o risco de Trissomia 21”. No caso de Fátima Baptista que, em 1991, tinha 24 anos, nada fazia prever que a Rita que trazia no ventre tinha uma cópia extra do cromossoma 21, cujo risco está muito associado à idade avançada da mãe. 

“A gravidez foi acompanhada e nunca me disseram que havia algo mal. Nem quando nasceu o médico percebeu”, conta Fátima Batista. O diagnóstico viria aos três meses numa consulta pediátrica. Rita Baptista fez, aos 15 meses, a operação que faltou à primeira doente de Mónica Pinto.

Nos 13 anos entre o nascimento de uma e da outra bebé, alguma coisa mudou na atitude da sociedade face à diferença que alterou completamente a esperança e qualidade de vida das pessoas com T21. Mas ainda há caminho para andar. “A Rita foi rejeitada num infantário, porque dava muito trabalho, na escola punham-na numa manta, até me aborrecer e lhes dizer que ela estava ali para aprender e não para ser guardada”, conta a mãe. 

Rita Baptista fez o 9.º ano e chegou a trabalhar como auxiliar num infantário, “de onde foi afastada por preconceito de um grupo de mães”, lamenta Fátima Baptista.

Irmãos no lugar dos pais

O futuro de Rita Baptista está assegurado pelos pais, mesmo que ela viva para além deles. “Compramos um apartamento, é um valor para quem tomar conta dela. Além disso, tem um irmão e uma irmã e somos uma família muito unida”, tranquiliza-se a mãe. 

Miguel Domingues, de 48 anos, utente da CERCI Guimarães, “há muitos anos”, de acordo com Paulo Pereira, um dos diretores técnicos da instituição, também têm a retaguarda assegurada por uma irmã. A face de Miguel Domingues é a de uma pessoa com T21, mas com os cabelos grisalhos a denunciarem a idade. “Jantar hoje, como vai ser?” – pergunta, preocupado porque a mãe, com quem vive sozinho depois de o pai ter morrido, está hospitalizada. 

Miguel Domingues é utente da Cerci há muitos anos, o seu futuro passa pela ajuda da irmã. Foto:Artur Machado/ GI

António Freitas, de 51 anos, é outro utente da CERCI Guimarães com T21 e cabelos brancos. “Somos grandes amigos”, afirma enquanto aperta o técnico de ação social num abraço sincero. Os dois homens têm aproximadamente a mesma idade, conhecem-se há 13 anos e há entre eles uma cumplicidade que vai além das relações profissionais. 

“O futuro dos que não têm retaguarda são os lares residenciais, onde há sempre mais pedidos do que capacidade de resposta”, aponta Paulo Pereira. 

Investir na autonomia e no emprego

António Freitas, de 51, tem T21 e faz inúmeras atividades na CERCI Guimarães, além de ajudar a mãe “a varrer, a passar a esfregona no chão e a fazer as camas”, enumera. Quando se trata de ajudar o pai, picheleiro, com quase 80 anos, “não, isso é lá com ele”. Paulo Pereira, técnico de ação social, reconhece que, “na maioria dos casos, estas pessoas são superprotegidas”. Todavia, há famílias, associações e até empresas a procurar fazer as coisas de uma forma diferente.

António Freitas, 51 anos, tem muitas atividades diárias e gosta de pintar. Artur Machado/ GI.

A  Associação Pais 21 – Down Portugal, tem programas orientados para a autonomia, inclusivamente para a inserção no mundo do trabalho das pessoas com T21. Marcelina Souschek, presidente desta associação de famílias, afirma que uma das preocupações com o aumento da esperança de vida é o retrocesso cognitivo. “Há uma maior probabilidade destas pessoas desenvolverem demências e se não estiverem ocupadas a fazer coisas de que gostem e em que sejam úteis, é pior”, afirma.

Marcelina Souschek é mãe de uma jovem de 21 anos com T21 que se desloca no metro, em Lisboa, sozinha. “Se tenho medo? Tenho, mas a alternativa é tê-la presa!”, pondera. A Associação Pais 21 defende que estas pessoas devem trabalhar a meio tempo, “para poderem continuar a fazer uma série de outras atividades importantes”. As pessoas que colocam em empresas são sempre acompanhadas por um mediador e têm tido sucesso.

A rede de cafés-restaurantes Joyeux, nascida em França, em 2017, chegou a Portugal em 2021 e, nos seus quatro estabelecimentos, emprega 29 pessoas com dificuldades intelectuais e de desenvolvimento. A Associação Pais 21 já colocou pessoas com T21 em marcas tão conhecidas como o Corte Inglês e o Starbucks e algumas delas já mereceram a distinção de “funcionário do mês”.

A legislação também está a obrigar as empresas e instituições a adaptarem-se. Desde 2001, em todos os concursos para a administração pública com mais de 10 vagas 5% têm de ser reservadas para pessoas com deficiência e, desde 2023, as empresas que tenham entre 75 e 249 trabalhadores, têm que ter uma quota de 1% de pessoas com deficiência, para as empresas maiores é 2%.

Esta reportagem foi publicada no Jornal de Notícas, na edição online do dia 26 de abril de 2024 e na edição em papel do mesmo dia.