Anda de bicicleta sempre que pode, mas viu-se obrigada a gastar as suas primeiras economias num carro, porque não tinha transportes públicos para ir trabalhar. O Governo achou importante mandar-lhe um recado em forma de imposto: “só há um planeta e tu está a dar cabo dele, sua malandra”.
Rita tem 21 anos, terminou o curso de licenciatura em Gestão Hoteleira, este ano e quer fazer um mestrado, mas, para já, vai trabalhar durante um ano para juntar algum dinheiro, de forma a não pesar tanto no orçamento familiar. A mãe é operária têxtil e ganha o salário mínimo, o pai é soldador e, embora também tenha como base a remuneração mínima, acaba por trazer um pouco mais para casa à custa de horas extraordinárias. Mantê-la na universidade foi um esforço, Rita sabe-o, por isso, mesmo depois de os pais lhe dizerem que seguisse diretamente para o mestrado, decidiu que, no momento em que o irmão mais novo também acaba de entrar na universidade, o melhor era ir trabalhar um ano.
Pensou em juntar o útil ao necessário, procurando um trabalho onde pudesse acumular experiência na área da hotelaria e, ao mesmo tempo, ganhar algum dinheiro. A residência da família fica numa freguesia na periferia da cidade de Fafe, a 15 quilómetros do centro de Guimarães. Mandou currículos e bateu nas portas dos hotéis, hosteis, alojamentos locais e restaurantes das duas cidades. Na bagagem levava, além do canudo recentemente alcançado, alguma experiência a servir atrás de balcões e às mesas, nas férias de verão e nos fins de semana, desde os 14 anos. Na altura, pagavam-lhe “ao negro”, notas na mão, tiradas da caixa registadora pelo dono do café, no final de cada jornada. Para ela não podia ser melhor: primeiro porque, apesar de já ter para cima de um metro e sessenta, o Cartão de Cidadão denunciava que ainda não tinha idade legal para trabalhar; segundo, porque se tivesse um rendimento declarado podia perder a Ação Social Escolar.
Agora, porém, era diferente, com o curso terminado queria “um emprego a sério, com descontos para a Segurança Social, tudo direitinho”. Preferia que fosse perto de casa, em Fafe, onde pudesse chegar com a sua bicicleta ou onde o pai a pudesse deixar e apanhar, no caminho que faz diariamente para deixar a mãe na fábrica e seguir para o trabalho. Na freguesia onde Rita reside, passa um autocarro de manhã, para levar as crianças para a escola e há outro que faz o percurso inverso, ao fim da tarde. Nenhum transporte público liga a freguesia com a zona industrial onde a mãe trabalha, nem com a freguesia onde se situa a oficina de serralharia onde o pai é soldador.
Ao fim de alguns dias de procura, a sorte sorriu-lhe. Um dos mais afamados restaurantes de Guimarães estava disposto a dar-lhe uma oportunidade. Claro que não era nada relacionado com a gestão que andou a estudar, era para servir à mesa, inscrita na Segurança Social, com direito a férias pagas e a subsídio de Natal. Além disso, num restaurante de classe, talvez não tivesse que aturar os piropos e o “mau vinho” dos clientes, pensou. Quando contou à mãe, principalmente depois de lhe explicar o horário – das 10 horas até acabarem os almoços e das 18 horas até acabarem os jantares -, o entusiasmo esmoreceu. “Como é que vais andar para trás e para a frente?” – perguntou-lhe. “Quando saíres à meia-noite, como é que vens para casa?” – queria saber a mãe e com razão.
“Não vamos deixá-la vir por aí a cima de bicicleta, à noite”
“Já estive a ver, o último autocarro é às 22.15. De Fafe para cima venho de bicicleta”. “Tudo são facilidades aos 21 anos”, pensou a mãe, mas não disse mais nada, afinal a filha estava tão entusiasmada por arranjar aquele emprego e logo num restaurante tão reconhecido. “Vai ser bom para o meu currículo mãe, vais ver”. À noite, sentados na cama, a mãe e o pai conversaram sobre aquele projeto da Rita e decidiram que iam ajudá-la no que fosse possível. “Está decidido, eu vou buscar a rapariga à estação. Não vamos deixá-la vir por aí a cima de bicicleta, à noite”, assegurou o pai, antes de se virar para o lado e deixar desfalecer o corpo, cansado da jornada de 12 horas.
Assim foi durante uns dias. Rita andava entusiasmada com o seu novo trabalho, onde via colocadas em prática algumas das teorias que tinha aprendido no Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, bem diferente dos tascos onde tinha trabalhado até ali. Apanhar o autocarro das 22.15 obrigava-a a correr todos os dias e, às vezes, só conseguia com a boa vontade dos colegas que a deixavam sair antes de terminado o trabalho. Compensava-os chegando mais cedo, de manhã, para montar a esplanada – 20 mesas, outros tantos guarda-sóis e 80 cadeiras – sozinha. Quando chegava a Fafe, no terminal de autocarros, lá estava o pai, ainda com a roupa do trabalho. “Acabei às nove, não valia a pena ir casa. Assim até é melhor, jantamos juntos”, justificava-se. Rita ficava sem coragem para lhe dizer que já tinha jantado, uma das regalias do novo emprego. Acabava por comer qualquer coisa, enquanto fazia conversa”.
Rita fica sem alternativas
Quando tudo parecia ter atingido um estado de equilíbrio, chegou-se a sábado. Rita lembrou-se que não tinha verificado os horários dos autocarros ao fim de semana, “mas não podia ser muito diferente, afinal, eram dias em que as pessoas estavam livres e andavam na rua até mais tarde”. Quando pesquisou, viu que não era assim e que o último autocarro de volta a Fafe era às 20.05. Passou o dia no trabalho inquieta. Sabia que se ligasse ao pai ele a iria buscar, mas não tinha sido esse o acordo e não queria fazê-lo. Ponderou ir a pé, pela pista de cicloturismo, mas desistiu da ideia quando pensou no tempo que levaria. “Quando chegasse já andava tudo à minha procura”, riu-se da sua desgraça.
No intervalo da tarde, depois de servidos todos os almoços, feitas as arrumações e as limpezas, quando estavam por ali a fazer tempo até começar a segunda jornada do dia, Rita comentou com uma colega a sua aflição. Dois ou três anos mais velha do que ela, mas já com alguma de experiência na casa, a colega tinha tomado Rita ao seu cuidado, servindo-lhe de tutora no novo trabalho. “Não te preocupes com isso, eu levo-te a casa”, intrometeu-se o gerente do restaurante, com ar de quem tinha ouvido a conversa por mero acaso. Entre “não, não é preciso” e “faço questão, não custa nada”, venceu este último, até porque Rita não tinha propriamente alternativas. Quando o acordo ficou selado, Rita não reparou no ar de náusea na cara da colega e ela também não lhe disse mais nada.
A noite de sábado revelou-se bem mais longa do que as do resto da semana, com clientes a chegarem para jantar para lá das dez horas. Rita teve de telefonar para casa, para informar que chegava mais tarde. “Pelo menos não é para pedir para me virem buscar”, tranquilizou-se. Não se deteve nos detalhes de como chegaria a casa. “Uma colega vem trazê-la, acho que é isso”, disse a mãe, depois de desligar o telefone, ao pai que aguardava preocupado.
O galifão sai às arrecuas
Perto da uma da madrugada, o pai acordou com o barulho de um carro que descia o caminho rural que dava acesso à casa. Levantou-se do sofá onde se tinha estendido, decidido a esperar pela Rita, e foi recebê-la ao portão. Quando saiu do carro, Rita não sabia se devia ficar admirada ou preocupada, ao ver pai a espreitar por cima do portão. Logo depois dela, do lugar do condutor, saiu um tipo que não deixava dúvidas ao pai de que se tratava de um galifão. O carro sport, o casaco de cabedal de gola levantada, mas sobretudo, as calças slim a que faltavam dez centímetros e o sapato clássico sem meias, denunciavam o personagem. Adivinhando o apetite daquele tipo, uns bons dez anos mais velho que a Rita, estava decidido a não lhe dar conversa. Entreabriu o portão, apenas o suficiente para a filha entrar. “Boa-noite e obrigado”, bateu com o portão, contente por saber que o indivíduo teria de voltar até à estrada principal às arrecuas, já que, sem entrar no pátio da casa, era impossível fazer inversão de marcha.
Rita ficou surpreendida com a brusquidão do pai, habituada a vê-lo como uma pessoa afável, mas assim que ele a estreitou com os braços fortes e lhe chamou, como habitualmente fazia, “minha pequena”, apesar de serem da mesma altura há pelo menos três anos, esqueceu-se do episódio. O pai, contudo, continuou a pensar, muito depois de Rita já estar na cama. Pensava que se a filha ia entrar no carro de um pirata como aquele, devia ser porque queria e, nesse caso, ele não tinha nada com o assunto, “mas por necessidade, isso é que não!”
“Temos de ajudar a pequena a comprar um carro”
No dia seguinte, ao pequeno-almoço, já Rita tinha partido para mais um dia de trabalho, disse à mulher: “Temos de ajudar a pequena a comprar um carro. Ela tem um dinheirinho e se nós metermos outro tanto já dá para comprar um carrinho para estas pequenas voltas”. A mãe não o disse, mas já tinha pensado no assunto. Sentia-se culpada por, três anos antes, quando Rita quis tirar a Carta de Condução, não ter podido ajudar. Calhou numa altura em que foi preciso pagar o seguro do carro e o da casa e, por azar, o frigorifico avariou e foi preciso comprar um novo, “que agora nada tem conserto”. Não quis ir às poupanças e a filha decidiu partir o mealheiro para não adiar. Agora estava decidida, “levantamos os Certificados de Aforro, afinal poupa-se para quando é preciso”, anuiu.
Passados uns dias, Rita tinha o seu primeiro carro. Nem queria acreditar. É verdade que era para ir e vir para o trabalho, mas dava-lhe também uma sensação de liberdade, como se, finalmente, fosse completamente adulta. Nem teria comprado o carro se os pais não tivessem surgido com a ideia e com a disponibilidade para ajudar, mas agora não podia conter aquela sensação de: “Posso ir onde eu quiser à hora que desejar”.
“A GPL, porque o gasóleo está praticamente ao mesmo preço da gasolina”
Com a ajuda do pai, escolheu um modelo pequeno, “a GPL, porque o gasóleo está praticamente ao mesmo preço da gasolina”, com uma quilometragem que lhe pareceu aceitável (120 mil quilómetros), já que se decidiu por um carro de 2005, para pagar menos Imposto Único de Circulação (IUC). A viagem matinal para o trabalho transformou-se num prazer, apesar de ainda ter de percorrer um quilómetro a pé, desde o sítio onde deixava o carro até ao restaurante, para não pagar o estacionamento. Ao chegar, costumava cruzar-se com o dono do restaurante que, por ter um Tesla Model X, elétrico, estacionava gratuitamente, quase à porta do restaurante.
Rita, envolvida na causa da defesa do ambiente e nada dada à inveja, nunca pensou naquela situação como uma injustiça. Defende a necessidade de fazer uma transição energética e orgulha-se de contribuir com a sua parte, andando de bicicleta até onde lhe é possível e um pouco mais além. Ficou contente por saber que o GPL é um combustível ambientalmente mais sustentável que a gasolina e o gasóleo, apesar de não perceber porque é que o uso desse combustível nunca foi promovido. “Porque é mais barato e, nesse caso, o Governo não enchia tanto os bolsos. Eles querem lá saber do ambiente! És crente!”, resmungava o pai.
Passou um mês. Rita está maravilhada com o trabalho e com o carro que, além de lhe dar conforto, proporciona-lhe liberdade de sair da freguesia, de ir tomar um copo com as amigas, sem depender do pai para a ir buscar. Há dias, porém, ficou a saber que o Governo, o primeiro-ministro e o ministro das Finanças lhe vão aumentar o IUC do carro para compensar um abaixamento dos preços numas autoestradas onde ela nunca passou. De 60,64 euros o IUC do carro da Rita passa para 161,37. O Governo acha que ela tem de ser penalizada por ter comprado um carro velho e andar por aí a poluir o ar. Ao Governo não lhe interessa que Rita ande de bicicleta sempre que pode, que não tenha alternativas viáveis de transporte público, que não tenha dinheiro para um carro mais moderno, que o carro que comprou seja movido a GPL e, portanto, muito menos poluente. Rita vai pagar a transição energética