Está montado um Estado de controle total em que o cidadão não pode circular tranquilamente a uma velocidade normal, sem receio de ser multado por máquinas de vigilância omnipresentes ou por agentes emboscados atrás de moitas
Em 1988, de Bragança a Lisboa, os Xutos e Pontapés rebentaram com três radares, ou pelo menos é o que dizem na letra de “Para ti Maria”, que faz parte do álbum 88, lançado nesse ano. Há uns dias atrás, de Fafe a Caldas das Taipas (são 20 quilómetros, para quem não conhece) passei por quatro radares, dois fixos e outros dois móveis, devo dizer, encobertos. Vem isto a propósito de ter ouvido uma responsável da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) dizer na rádio, a propósito da entrada em funcionamento de mais 37 radares, entre eles alguns de velocidade média, que “não se trata de uma perseguição”.
Ora, se alguma dúvida restasse, o próprio facto de a ANSR precisar de vir dizer que “não se trata de uma perseguição” torna evidente que é uma perseguição. Também disse, esta mesma responsável, que não se trata de aumentar a receita por via das coimas. Contudo, que outra razão pode haver?
Diminuir a sinistralidade, diz a ANSR. Haverá alguns que estão de acordo porque acham que o número de acidentes, de feridos e de mortos na estrada é elevado. “Um morto na estrada já é demais”, dirão os mais fundamentalistas entre estes. O Governo regozija-se, este e outros que venham. A fórmula para implementar políticas repressivas é instalar o medo e depois apresentar as medidas como inevitáveis para garantir a segurança. “Não se trata de arrecadar receita, é para aumentar a segurança rodoviária”, dizem-nos.
É óbvio que se andarmos mais devagar a probabilidade de termos acidentes é menor e, se os tivermos, é provável que não sejam tão graves. Este raciocínio, todavia, não justifica que todas as limitações de velocidade façam sentido, nem tampouco que se persigam os automobilistas como se fossem permanentes suspeitos. No limite, a forma de evitar todo e qualquer acidente seria reduzir a velocidade a zero, com todos os carros parados não haveria nenhum acidente. Esta solução é claramente absurda, até porque, para quem vive fora dos grandes centros não há alternativa ao automóvel e na estrada circulam também os transportes de mercadorias e os transportes públicos rodoviários. Portanto, entre ficar parado e circular a grande velocidade, há um meio termo que é onde se encontra o bom senso.
Este ponto de razoabilidade que poderia, por exemplo, nas autoestradas, estar nos 150 quilómetros por hora, levaria a que muito menos condutores prevaricassem. Isto, porém, pode não interessar ao Governo que, nos primeiros quatro meses de 2023, arrecadou quase 31 milhões de euros em multas por infrações ao Código da Estrada, um crescimento superior a 26% face ao período homólogo de 2021. Atualmente, limites de velocidade completamente desligados do senso comum levam a que os condutores os ignorem completamente. A atenção dos condutores não está orientada para fazerem uma condução segura para si próprios e para os outros automobilistas, ela está focada no jogo de gato e rato com a polícia.
O casino ganha sempre
É por isso que assistimos a cenas ridículas de automobilistas a travarem – frequentemente com perigo – quando chegam a uma zona em que se sabe que está instalado um radar, para logo a seguir acelerarem. Na mente dos automobilistas, os limites de velocidade não estão relacionados com a segurança, fazem parte de um jogo de azar que são obrigados a jogar todos os dias, em que, como é normal neste tipo de jogos, o casino ganha sempre.
Em 1988, quando os Xutos, de Bragança a Lisboa, só encontraram três radares, o número de acidentes de viação com feridos e mortos, em Portugal, foi de quase 42 mil. O número continuou a subir até 1992, quando atingiu aproximadamente 51 mil. Desde aí tem baixado e, em 2022, ficou pelos 32 mil. Nada mau, menos 10 mil do que no final da década de 80. “Mas ainda são muitos”, dizem aqueles para quem um morto já é demais e a solução seria acabar com o automóvel. Relativamente a esses não tenho esperança de que alguma coisa que eu escreva possa abalar a sua opinião.
Aos outros, desafio-os a pensarem sobre as razões que levaram a esta redução do número de acidentes graves. Se tiverem idade para isso, pensem em como eram o parque automóvel e as estradas nessa época. Se sofrerem dessa limitação que é ser jovem, perguntem aos vossos pais. Agora, lembrem-se que, de uma forma geral, os limites de velocidade eram os mesmo que hoje vigoram. Ou naquele tempo éramos uns loucos suicidas, o que não é verdade, ou os limites de velocidade hoje, com estradas muito melhores e carros muito mais modernos estão desajustados (no final da década de 80, o ABS ainda era uma opção cara, quando existia, só vinha de série em marcas como a Mercedes).
É claro que a redução da sinistralidade esteve mais relacionada com a melhoria da rede viária e com a importação de Audis, Volkswagens, Mercedes e BMW´s com cinco anos ou mais, mas mesmo assim mais recentes que os cacos que por aí andavam, do que com qualquer campanha de prevenção rodoviária. O único fator, além destes dois, que também terá contribuído para a redução dos acidentes, foi o aumento da condenação moral da condução sob o efeito do álcool. A relação entre a sinistralidade e a qualidade das vias é tão evidente que algumas das estradas mal construídas entre o fim da década de 80 e o início dos anos 90, com o dinheiro que chegou da CEE (depois, UE), se tornaram tristemente célebres por serem autênticos cemitérios: caso do IP5 e do IP4. As pessoas que circulavam por estas armadilhas e que lá morreram não eram, de uma forma geral, mais incumpridoras que as restantes. Mesmo quando pensamos nos acidentes envolvendo condutores sob o efeito do álcool, podemos questionar: quantos deles se teriam evitado se as estradas não fossem tão más?
A circular de Guimarães, por onde tenho que passar nos 20 quilómetros que separam Fafe de Caldas das Taipas, o tal percurso onde encontrei quatro radares, é uma destas estradas mal construídas. Desde logo, é ridículo chamar circular a uma via que não circunda, fruto das opções de políticos que acham que o automóvel está condenado como meio de transporte. Acham isso para os outros, uma vez que, a eles nunca os vi aparecerem de bicicleta em lado nenhum. A dita circular é uma via de duas faixas estreitas em cada sentido, sem escapatória na maior parte do trajeto e com um separador de betão no eixo. Esta estrada distribui o trânsito para Braga, Porto, Vizela, Fafe, para os diversos pontos do concelho e serve quem vive na cidade e quer ir de um ponto a outro sem passar pelo centro. Porém, como foi mal construída, acontecem frequentemente acidentes que, por a via ser estreita, deixam o trânsito bloqueado. As próprias ambulâncias têm dificuldade em chegar a certos pontos. Em dias de chuva, formam-se enormes lençóis de água que os carros que passam num sentido elevam em enormes ondas e projetam sobre os pára-brisas dos que circulam em sentido contrário. Quando um carro avaria, na falta de uma escapatória, fica a ocupar uma parte da faixa de rodagem
É para teu próprio bem
A estrada é virtualmente irreparável porque a falta de planeamento urbano, ou um planeamento, que serviu outros interesses que não o dos cidadãos, deixou que se fosse construindo de tal forma que hoje não é possível alargar a via. Este é um local ótimo para a caça à multa. Aplicam limites de velocidade ridículos que mesmo o automobilista mais cuidadoso, atendendo às limitações da via, não cumpre e alegam que é por uma questão de segurança. “Afinal é um sítio onde há tantos acidentes!”
Num ponto desta “circular”, mal construída, a velocidade máxima permitida é 50 quilómetros por hora. Foi aqui que, estrategicamente, a ANSR colocou o novo radar fixo. Trata-se de um local onde o condutor médio, a conduzir tranquilamente, sem pressas, passa entre os 70 e os 80. Agora vai ser obrigado a fazer uma travagem, reduzir a terceira e quase parar na estrada. Porque 50 quilómetros por hora, numa via de duas faixas, mesmo que mal construída, é quase parado. Muitos vão ser apanhados, pelo menos nos primeiros tempos, porque não se trata de conduzir com cuidado, isso a maioria das pessoas já faz, até porque sabe que a estrada não presta. Agora é preciso quase parar o carro e fazer uma vénia e disso uma pessoa pode esquecer-se.
É com a imprevidência do condutor que regressa a casa tranquilamente, depois de um dia de trabalho, no seu carro supertaxado, e que passa a 80, num lugar onde circular a essa velocidade não representa perigo nenhum, mas em que há um sinal que diz que só se pode andar a 50, que o Governo conta para alcançar os 135,8 milhões de euros de multas que estão previstos no Orçamento de Estado de 2023. O valor mais alto dos últimos cinco anos.
Conta com isso e com a bonomia dos portugueses que, além de estarem sobrecarregados por uma carga fiscal brutal, se sujeitam a mais este esbulho sem protestar. Numa altura em que se fala tanto de proteção de dados, como é que se pode admitir que, num percurso de 20 quilómetros, estejam montados quatro radares? Se isto não é vigilância dos movimentos da população, coisa própria de Estados totalitários, então o que é?
Recentemente, acompanhei um julgamento em que um dos principais suspeitos de um crime de homicídio foi ilibado por impossibilidade de usar os metadados das telecomunicações como meio de prova. Ao mesmo tempo que isto acontece, permitimos, serenamente, que a ANSR controle o tempo que levamos a chegar do ponto A ao ponto B, com data hora e matrícula do veículo. Tudo convenientemente tratado por máquinas. Os polícias que se ponham a pau, dentro em breve, desnecessários que já são para passar multas, seguem pelo mesmo caminho dos funcionários das portagens.
Por enquanto, vão-se escondendo nos matos ou atrás dos muros, como é próprio dos bandidos, normalmente um pouco antes do local onde estão os radares fixos ou logo depois, para caçar o automobilista que circula à velocidade normal, quase sempre pelo menos 20 quilómetros por hora acima do permitido.