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O vírus da China

Porque razão não lhe chamamos assim?

Afinal, parece aceite pela generalidade que a doença surgiu na China, embora agora o governo chinês afirme que pode não ter sido bem assim. Se, no passado, era aceite com normalidade que se atribuísse às doenças um nome relacionado com o local onde surgiam pela primeira vez, hoje, nos dias da correcção política e do policiamento da linguagem, o baptismo das maleitas tem que ter outros cuidados.

Foto: Miguel Á. Padriñán

A administração Trump tem feito o seu “melhor” para colar um nome com referência à China a este novo vírus. “Whuam Virus” ou “Chinese Coronavirus”, são algumas das propostas que políticos conservadores americanos, como Mike Pompeu e Kevin McCarthy, têm tentado por em circulação. Até agora, porém, ninguém foi tão longe como Donald Trump que denominou o vírus simplesmente “foreign virus”, ou seja, vírus estrangeiro. Os republicanos americanos não estão sozinhos nesta luta pela atribuição de uma geografia de origem ao novo Corona Vírus. Os chineses já vieram aventar a hipóteses de ter sido uma delegação americana, a participar nos Military World Games (realizados em Whuam, em Outubro), a introduzir o vírus na China.

Alguma comunicação social portuguesa começou por tratá-lo, com toda a naturalidade, por “Vírus da China”, até que o vírus ganhou nome próprio, no passado dia 11 de Fevereiro. Embora possa parecer, COVID-19 não foi obra da imaginação de um amante de ficção científica, a madrinha foi a Organização Mundial de Saúde (OMS). Tomando em linha de conta o estigma que pode estar relacionado com a associação de uma moléstia a uma geografia, a OMS, desde 2015, introduziu um conjunto de boas práticas para a atribuição de nomes a novas doenças infecciosas. Adhanom Ghebreyesus, director-geral da OMS, esclareceu na conferência de imprensa, em Genebra, que “co” está relacionado com corona, “vi” com vírus, “d” com doença e “19” com o ano em que o surto foi declarado.

“Tínhamos que encontrar um nome que não fizesse referência a uma localização geográfica, um animal, um indivíduo ou a um grupo de pessoas, que fosse pronunciável e que que se relacionasse com a doença… Ter um nome é importante para prevenir o uso de outros nomes que podem ser imprecisos ou estigmatizantes”, afirmou Adhanom GheBreyesus.

Num tempo em que se fala de inteligência artificial, os nomes das doenças passarão a parecer-se com alguma coisa que uma máquina poderia ter criado. O filósofo francês Michel Foucault afirmou que o discurso é uma forma de impor a verdade aos que ouvem. É por isso que tantos se esforçam tanto para dominar o discurso. Não é indiferente ao governo chinês, nem aos chineses em geral, nem tampouco ao governo americano, o corona vírus ser apelidado de COVID-19 ou de Vírus da China. Esta é, na realidade, uma luta pelo poder. Uma contenda para impor uma visão do mundo, uma política, uma ideologia, uma verdade absoluta. Neste caso, a China, ao que parece, já levou a melhor.

Afinal, tal como os vírus sofrem mutações, também as palavras vão ganhando novos significados

Foto: cottonbro studio

Concorde-se ou não, no campo da saúde, referências como “doença dos legionários” parecem ter os dias contados. A OMS, envolvida pelas exigências do politicamente correto, cria um nomes tão desumanos que parecem não ter relação com nada sem ser com os próprios vírus. Isto evitará a tendência, muito humana, de culpar os “estrangeiros” pelos males que sucedem. Mas é claro que ninguém poderá assegurar durante quanto tempo é que as palavras, depois de lançadas ao vento, permanecerão inócuas. Afinal, tal como os vírus sofrem mutações, também as palavras vão ganhando novos significados. Segundo Margarida Correia, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a palavra “vírus” significava “humor”, depois passou a designar um parasita microscópico, ligada ao campo da medicina e da biologia. Mas não se ficou por aí, com o advento da informática o “vírus” passou a ser uma rotina informática que se introduz no computador causando danos.

Teremos uma linguagem mais pobre mas mais “limpa”

Foto: Lara Jameson

Parece, portanto, pouco provável que em futuras pandemias aconteça o que sucedeu com o surto de gripe de 1918, que vitimou entre 50 e 100 milhões de pessoas. A Gripe Espanhola, uma pandemia de gripe que assolou o mundo no final da segunda década do século XX, não terá tido a sua origem em Espanha. Com grande parte da Europa envolvida na Grande Guerra, a imprensa encontrava-se censurada na maior parte dos países. Uma vez que Espanha permaneceu neutra, a imprensa do país vizinho terá noticiado o surto da doença livre de constrangimentos, dando a impressão que o vírus era mais letal naquele país. Na verdade, o vírus terá aparecido pela primeira vez no Kansas, em Março de 1918, e só terá chegado à Europa no mês seguinte.

Nomes de doenças como Gripe Suína, Gripe das Aves, Doença das Vacas Loucas, Ébola (de rio Ébola na Republica Democrática do Congo), Zika (uma floresta no Uganda) ou Vírus do Nilo Ocidental brevemente serão vestígios do passado. Teremos uma linguagem mais pobre mas mais “limpa”. Indiferentes às formas como são nomeados e às nacionalidades que lhe atribuímos os vírus continuarão a viver connosco.